
A gaita-de-fole está tão ligada à identidade dos escoceses que muitas pessoas acham que o instrumento foi inventado na Escócia. Essa idéia, contudo, é errada. A gaita-de-fole provavelmente foi desenvolvida por povos mediterrâneos na antigüidade, antes mesmo do nascimento de Cristo. Egípcios, gregos e romanos tocaram formas primitivas de gaita-de-fole. Na Roma imperial, o instrumento era conhecido pelo nome de tíbia utricularis, e já era utilizado como instrumento militar pelos legionários. Com base em textos latinos de autores como Dio Crisóstomo, historiadores especulam que o imperador Nero foi grande entusiasta da gaita-de-fole. Portanto, se realmente ele tocou algum instrumento musical durante o famoso incêndio de Roma, esse instrumento musical deve ter sido uma gaita-de-fole, e não uma harpa ou uma cítara. Os romanos espalharam a gaita-de-fole através de suas legiões por quase todo o território continental europeu, e eles também levaram o instrumento até as Ilhas Britânicas, onde a gaita-de-fole cruzou fronteiras e alcançou a Escócia através da Hadrian's Wall. Na Escócia, tida pelos romanos como região de povos bárbaros, o instrumento mais popular até a chegada da gaita-de-fole era a harpa celta. Ninguém sabe bem porque, mas a gaita-de-fole causou um grande impacto no cenário musical escocês, e fez tamanho sucesso que os harpistas foram quase que inteiramente substituídos pelos gaiteiros (pipers). Alguns tentam explicar esse fenômeno esclarecendo que os escoceses eram muito barulhentos quando se reuniam socialmente. Assim, para ouvir um harpista tocar seu instrumento, a platéia precisava manter um inconveniente silêncio. Por outro lado, se um gaiteiro tocasse, pouco importava se as pessoas continuassem conversando em altas vozes, pois o potente som da gaita-de-fole continuaria a ser ouvido. Na Escócia, a gaita-de-fole foi aperfeiçoada pelos Highlanders (habitantes da região norte do país) e batizada de Great Highland Bagpipe. O instrumento daí resultante foi adotado pelos clãs escoceses e famílias de pipers, que preservaram seu ofício geração após geração. Essas famílias de gaiteiros tornaram-se populares em toda a Escócia, sendo que a mais famosa foi a família MacCrimmon, de Skye, que chegou à Escócia no século XVII e dominou a arte de tocar a gaita-de-fole escocesa por 200 anos, estabelecendo toda a estética da música para esse instrumento. A música da Great Highland Bagpipe passou gradualmente a refletir cada mínimo aspecto da vida dos clãs escoceses. O instrumento era tocado em casamentos, funerais, festas, para celebrar a produção de uísque, e também na guerra. Nas campanhas militares, o gaiteiro acompanhava o chefe do clã e tocava durante a luta para inspirar os guerreiros escoceses e, após as batalhas, tocava novamente para celebrar as vitórias do clã ou reverenciar os soldados mortos. Essa incorporação às tradições do povo local que o instrumento sofreu na Escócia não ocorreu no restante do território europeu. Mesmo assim a gaita-de-fole tornou-se muito popular na Europa continental como instrumento de pessoas comuns e da nobreza, principalmente na Idade Média, período em que quase toda a região da Europa tinha sua própria versão de gaita-de-fole. Os instrumentos dessa época tinham aspectos e sonoridades variadas, mas basicamente a mesma estrutura, compreendendo um mecanismo de inserção de ar (bocal ou fole), um reservatório de ar para que o instrumentista pudesse tocar sem parar (bolsa de couro animal, também chamada de odre), uma flauta de digitação, e tubos de ressonância que funcionavam com palhetas. Esses instrumentos eram tocados por pastores, músicos itinerantes e menestréis em feiras, casamentos, e vários divertimentos realizados ao ar livre. A magia enigmática da música desses instrumentos produzia todo tipo de reação nas pessoas da Idade Média, a tal ponto que, algumas vezes, as gaitas-de-foles eram vistas como instrumentos do demônio e queimadas em praças públicas. A lenda germânica do flautista de Hamelin é um exemplo dessa atmosfera mágica que parecia envolver a gaita-de-fole, pois na verdade o flautista de Hamelin tocava uma gaita-de-fole e não uma flauta. Conta a lenda que o gaiteiro livrou o povoado de Hamelin da peste tocando uma melodia mágica em sua gaita-de-fole, que fez com que os ratos o seguissem para fora dos limites da cidade. Porém, os habitantes se recusaram a pagar pelos serviços prestados pelo gaiteiro, que por vingança, tocou durante a noite outra melodia mágica em sua gaita. Dessa vez, porém, o gaiteiro foi seguido pelas crianças do povoado, que nunca mais foram vistas. As gaitas-de-foles continuaram populares em toda a Europa e referências a elas são inúmeras, desde as peças de Shakespeare até os quadros de Bosch e Bruegel. No século XVIII, entretanto, com a ampliação dos grandes centros urbanos, a música começou a se tornar um fenômeno de recintos fechados, e os instrumentos que funcionavam com palhetas (entre eles as gaitas-de-foles) começaram a serem substituídos pelos metais e cordas, preferidos por compositores como Bach, Mozart e Beethoven. Neste momento, as gaitas-de-foles entraram em franca decadência, chegando mesmo a desaparecer em quase todo o território europeu, com exceção a regiões isoladas de influência celta, como a Galícia na Espanha, a Bretanha na França, a Irlanda e, claro, a Escócia, onde a Great Highland Bagpipe associou-se às tradições de famílias e alcançou o importante status de instrumento nacional dos escoceses. Na Escócia, a gaita-de-fole continuou sua saga não só como instrumento popular, mas também como instrumento marcial. Em 1745, os clãs escoceses, liderados por um príncipe da linhagem Stuart, conhecido como Bonnie Prince Charles, reuniram-se para combater os ingleses numa velha disputa dos Stuarts pelo trono da Inglaterra. Os clãs foram derrotados pelos ingleses na batalha de Culloden em 1746, o que determinou o fim do sistema de clãs na Escócia. Durante essa campanha militar, vários gaiteiros tocaram pela causa dos Stuarts. Um desses pipers, James Reid, foi aprisionado por tropas inglesas, levado a julgamento diante de uma côrte inglesa e acusado de alta traição contra a corôa da Inglaterra. Diante da acusação, James Reid declarou-se inocente, uma vez que simplesmente tocava sua gaita-de-fole durante as batalhas e não carregava armas. Os juízes ingleses, entretanto, declararam que um regimento escocês jamais marchava para a guerra sem um gaiteiro e, portanto, a Great Highland Bagpipe era, de fato, um instrumento de guerra. Como resultado, James Reid foi enforcado, e os escoceses foram proibidos de tocar gaitas-de-foles na Grã-Bretanha por quase 40 anos sob pena de morte. Extra-oficialmente, essas medidas eram um reconhecimento de que os escoceses eram grandes guerreiros, e que seu ardor na batalha estava intimamente ligado à arte de tocar a gaita-de-fole. Essa conclusão era tão clara, que depois da revolta escocesa de 1745, o governo inglês determinou que inúmeros regimentos fossem formados na Escócia pelo exército britânico com recrutas locais para servir aos interesses do futuro império. Nesses regimentos, como incentivo, os escoceses tinham permissão para usar seus saiotes tradicionais (kilts) e para tocar gaitas-de-foles. Muitos desses regimentos enviaram tropas para defender colônias e possessões britânicas no exterior, o que acabou popularizando a gaita-de-fole escocesa no resto do mundo. Aliás, esse é um dos motivos pelos quais associamos gaitas-de-foles a escoceses e não a outros povos que também têm ou tiveram gaitas-de-foles, como espanhóis, portugueses, franceses, alemães, italianos, poloneses, etc.. Dessa forma, se no século XVIII a Great Highland Bagpipe foi proibida por ser associada a episódios de rebeliões nacionalistas escocesas, por outro lado, no século XIX, com a absorção do instrumento pelas tradições do exército britânico, a gaita-de-fole e o kilt escoceses tornaram-se passaportes para a fama e a glória. Gradualmente, cada campanha militar britânica, cada guerra ou batalha produzia seu herói entre os gaiteiros. Isto porque a tradição ditava que os gaiteiros tocariam no campo de batalha para animar os soldados escoceses durante a luta, levando-os até as posições inimigas. Tocar a gaita-de-fole nessas circunstâncias, sob fogo inimigo, era considerado na era Vitoriana um ato de muita coragem, algo além da bravura convencional, um verdadeiro galanteio. Foi dessa maneira romântica que os gaiteiros escoceses tocaram a Great Highland Bagpipe nas guerras do século XIX e em muitas outras campanhas militares distantes e hoje esquecidas, tornando-se um mito no imaginário das pessoas de todas as partes do mundo.